Os contos de Lima Trindade
“Uma placa enferrujada informa o ano e o tombamento como patrimônio histórico nacional; o que não ameniza o fedor dos dejetos vindo de dentro (...); não impede a invasão de vagabundos e viciados; não recompõe os destinos ali naufragados, não esclarece o legado de cada fantasma (...); não elucida o presente; não oferece garantias de futuro.”
(Lima Trindade, “Todo sol mais o Espírito Santo”, Ateliê Editorial, 2005, p. 55)
“Todo sol mais o Espírito Santo” (Ateliê, 2005) e “Corações blues e serpentinas” (Arte Paubrasil, 2007) são os dois livros de contos publicados por Lima Trindade (Brasília/DF, 1966) até o momento. Em ambos, o desejo se revela a principal força catalisadora das histórias, desejo sexual, na grande maioria delas, mas também desejo de conhecimento – “Onde Monteiro Lobato errou?”, do primeiro livro; ou de fama e sucesso – “O pecado de Santa Helena”, também de “Todo sol...”; ou de inscrição do sujeito no tempo e no espaço – “O Velho Cão do Cerrado”, de “Corações blues...”: “Salvador ainda é a mesma ao seu redor (...), o Cine Glauber Rocha fechado, o prédio decadente d’A Tarde” (p. 135). Lima Trindade é um autor cioso do que em seus personagens é força, culpa, frustração, afeto, esperança, desencontro, desamparo, vergonha, graça. Alguns dos 28 textos (são 13 no primeiro livro e 15 no segundo) se estruturam com retalhos de uma prosa desenvolta, que se dedica a reler a infância (“Onde Monteiro Lobato errou?”), a adolescência (“Leponex”, conto de “Corações blues...” calcado em histórias em quadrinhos e canções pop), a primeira adultidade (as derivas filosóficas da quasenovela “Todo sol mais o Espírito Santo”) e os revisionismos da maturidade (“Noite num hotel da Asa Norte”, de “Corações blues...”). Outros textos, ao contrário, são curtas capturas de instantes psicológicos de um indivíduo que se alterna entre desajuste e sintonia com o mundo ao redor (“O balão amarelo” e “A primeira vez”, ambos de “Corações blues...”). Outros, ainda, pequenos dramas urbanos com ressonâncias sociais – nas narrativas ambientadas em Salvador (“Trinta e um do doze”, no primeiro livro; “Praça da Liberdade” e “Queen Sally II”, no segundo) – ou crônicas com inflexões pop – nas histórias que têm por cenário Brasília (“Conto gótico” e “O anjo loiro no bar”, ambas de “Todo sol...”) e São Paulo (“Calças de pintor”, no primeiro livro, e “Três movimentos para um selvagem desamor”, no segundo) –, quando não planos ficcionais de plena fantasia – as ruas “rigorosamente iguais”, de “terra acinzentada batida” e “casas todas de alvenaria”, do conto (algo cortazariano) “Fim de linha”, do livro “Todo sol...” (p. 88). O alcance da imaginação de Lima Trindade ganha maior evidência em “Mais uma vez”, de “Corações blues...” (espécie de desdobramento de “A primeira vez”, do mesmo livro), conto que hibridiza épocas e lugares e funde ficção e confissão, no relato do iminente reencontro de um antigo “cavalariço” com seu “senhor”, após longa separação: “eu cantarolava baixinho, (...) no tempo em que ainda não havia CD, Idade Média ainda. (...) hoje, passados tantos anos, dez ou quinze, (...) saí da Taverna na Vila Madalena e transpus o portal duplo do Tempo” (p. 143). A afirmação da homossexualidade do narrador é alegorizada pela transição gradual de uma relativa obscuridade, na primeira parte do conto – “no escuro da noite (...) a lua encoberta de nuvens” (ps. 142-143) –, para um anseio por luminosidade, na segunda parte – “abrindo os olhos como querendo enxergar melhor” (p. 143) –, sendo também acompanhada pela substituição da ambientação medieval por um cenário com marcas da contemporaneidade (“pufs”, “blues”, p. 144). Construídos com domínio técnico e prazer, os contos de Lima Trindade exibem um escritor seguro de seus objetivos.