O cinema que encantou Salvador
O surgimento e a difusão do cinema como modalidade de lazer na Bahia entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX é o assunto de "Fazendo fita: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930", livro do historiador Raimundo Nonato da Silva Fonseca. O trabalho, produto de dissertação de mestrado em história pela Ufba, é um relato de história social e urbana focado na Salvador do período de formação da República, marcado por transformações políticas, urbanísticas e culturais aceleradas. Analisando crônicas, reportagens e artigos de
jornais e revistas, o autor oferece um panorama da maneira como o cinema foi recebido pelos baianos e de como o meio, embora combatido por alguns intelectuais, foi usado como instrumento de modernização dos hábitos da população.
Quando o cinema chegou ao Brasil, encontrou um público que procurava padrões de etiqueta e moral compatíveis com o projeto de modernização do país, defendido pela elite política e econômica no poder. Enquanto as cidades eram higienizadas e reurbanizadas, hábitos de diversão e lazer mudavam, com a introdução de esportes (regatas, ciclismo) e a moda dos cassinos (um dos quais funcionava no Teatro Gregório de Mattos). Os filmes que chegavam às salas do Cinema Bahia (Rua Chile), do Cinema Ideal (Ladeira de São Bento), e do Cinema Guarany (atual Glauber Rocha, inaugurado em 1919 como Kursaal Baiano), dentre outros, apresentavam personagens e modelos de comportamento considerados "modernos". "Até a primeira Guerra Mundial, quase todos os filmes que chegavam à cidade eram, além de mudos, europeus, principalmente franceses, dinamarqueses e alemães", aponta o escritor.
Embora Salvador tivesse então um calendário de festas extenso como o de nossos dias, alguns setores no poder não reconheciam nas manifestações populares um lazer "civilizado" e combatiam a influência africana sobre a cultura local. "Naquele momento, o que se queria era 'civilizar a população', e isso significava 'desafricanizá-la'", analisa Fonseca, lembrando que o Carnaval com blocos afro enfraquecia a cada ano e passou a ser feito com desfile de "sociedades", bailes e carros temáticos.
Na prática, o cinema não transformou os costumes, mas se incorporou às festas e ao cotidiano. "Ir ao cinema se associa a outros hábitos, como caminhar pela Rua Chile para ver as vitrines das lojas, prática que surge nos anos 20. Até então, a rua, não sendo espaço para pessoas de família, era freqüentada apenas por escravos e trabalhadores", informa Fonseca, que atua como professor da Uneb em Santo Antônio de Jesus.
Influência imediata
A chegada do "cinematographo" em Salvador, em 1897, pouco menos de dois anos depois da estréia mundial em Paris, foi um dos principais eventos do ano, juntamente com o Carnaval e a recepção popular aos soldados do Exército que voltavam dos sertões vitoriosos na guerra contra Canudos. A primeira sessão pública de cinema da Bahia ocorreu em 4 de dezembro, um sábado, no Theatro Polytheama Bahiano, que ficava
no prédio onde hoje está o Instituto Feminino. Na programação, curtas-metragens, praxe naquele tempo: "O beijo", "O Minueto de Luís XV" e "Visão d'arte", dentre outros.
Como Raimundo Fonseca narra em seu livro, a nova invenção fez grande sucesso e em pouco tempo exibições de filmes se tornavam freqüentes (organizadas, na falta de salas apropriadas, em teatros, confeitarias e circos, além de projeções ao ar livre). Uma casa reformada em 1909 foi o primeiro espaço criado exclusivamente como sala de cinema. Além dos cinemas do Centro, surgiram na Cidade Baixa salas com entradas mais baratas (Fratelli Vita, Cine Popular) e, em Brotas, o Petit Cinema. Dentre as películas de produção local, havia imagens da Festa do Bonfim, do Carnaval de 1920 e o documentário "A indústria do fumo na Bahia" (exibido em abril de 1921 no Guarany e no Teatro Politeama).
O livro mostra que a influência do cinema no comportamento se refletiu no traje, na maquiagem ou na atitude de figuras que circulavam pelas ruas de Salvador, como as "vamps", ou "melindrosas", que escureciam os cantos dos olhos para ficarem parecidas com a atriz Thedda Bara. Os homens, por sua vez, faziam o estilo "almofadinha", inspirado em Rodolfo Valentino e outros astros da sala escura, que davam nome a peças de roupa: a camisa de listras pretas se chamava George Walsh; as de xadrez preto, Eddie Pollo.