"
O ar das cidades", de Sérgio Alcides (Nankim, 2000), é um ensaio em versos sobre transitoriedade e memória - referida como "
recordação" (ps. 18, 67), palavra etimologicamente derivada do radical latino "
cordis", "
coração", imagem poética reincidente ao longo da obra (ps. 21, 30, 58, 66). Nos 44 poemas e três seções do livro ("Suíte", "O ar das cidades" e "Apartamentos"), tempo e morte, temas fundamentais na poesia de qualquer época, são sistematicamente explorados sob diversos ângulos, no contexto do desencanto com o cotidiano que marca a cultura infoglobal. A ambiência metropolitana e o estilhaçamento composicional são o cerne tradicional modernista a partir do qual Alcides movimenta uma "
maquinaria" (p. 20) de êxito incerto, mas que "
não arrebenta" e é capaz de desmecanicizar a percepção: "
Mal consigo ler /
a cidade no meio das letras / (...) //
Há muitos destroços /
de palavras e luzes, (...) /
cobrindo o coração. // (...) //
Se houver um desabamento /
o poema ficará no ar / (...) // (...)
Mas os letreiros, não." (ps. 30-31). Este poema, intitulado "Um 'slide'", manifesta uma concepção do texto como veículo para novas visões ("
Ponho este poema - um / slide
- deitado na linha do horizonte"), atitude evidente em imagens como o "
tapa-olho" (p. 20), o olho que "
não era de vidro" (p. 32), os "
óculos escuros" (p. 33), o "
olho na câmera lenta" (p. 67) ou no poema "Televisão à janela: parapeitos" (p. 55). O gesto insurreicional contra a ordem constituída também sustenta o interesse dos textos por serem eles convites a que o leitor participe de sua elaboração, instando-o a lê-los como ocorrências de linguagem que aludem à dialética entre precariedade e integridade subjacente à relação do homem com o mundo (o próprio "Um 'slide'", o imperativo "
se espete" do poema "Vodu", o poema "Jogo dos sete erros") ou que tangenciam a reflexão política ("
se não invadirmos o passado /
como diremos que é nosso?", p. 41). O sujeito poético circula entre as ruínas do espaço público com uma voz oblíqua, composta dos resíduos que vai encontrando em seu trajeto: o "
velho cheiro" (p. 17), "
a frasqueira onde viaja /
o remédio" (p. 23), "
o cavalo em pedaços" (p. 29), as partículas sonoras da "Valsa de uma cidade" (p. 38), o "
fio caído" da fantasia genética de "Hello Dolly" (p. 60), "
um fio de cabelo a mais (ou menos)" (p. 61), "
um fio a menos" (p. 62). Porém há sinais de que não é possível reconstruir uma apreensão plena da realidade: "
Suponho que tem um coração (e erro)" ("Um 'slide'", p. 30), "
Não vejo maravilha" ("Não Vermeer", p. 54), "
Não conheço restauração /
nem laboratório de recomeço" ("Arruína", p. 62). A estrutura geral do trabalho é circular, cenas e episódios girando em torno uns dos outros e abrindo, por efeito cumulativo, um terreno movediço para o discurso de Sérgio Alcides se instalar. Em 2007 "
O ar das cidades" teve uma segunda edição, eletrônica, gratuita, oferecida pelas
Edições Quem Mandou? e acrescida de quatro poemas ("Candeias", "Cama de gato", "Sonhos" e "Graças").
pós-escrito em 18 de maio: as anotações acima foram publicadas na edição de maio de 2009 da
revista virtual de cultura literatura Verbo 21.