Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Tuesday, May 05, 2009

"O ar das cidades", de Sérgio Alcides (2000)

"O ar das cidades", de Sérgio Alcides (Nankim, 2000), é um ensaio em versos sobre transitoriedade e memória - referida como "recordação" (ps. 18, 67), palavra etimologicamente derivada do radical latino "cordis", "coração", imagem poética reincidente ao longo da obra (ps. 21, 30, 58, 66). Nos 44 poemas e três seções do livro ("Suíte", "O ar das cidades" e "Apartamentos"), tempo e morte, temas fundamentais na poesia de qualquer época, são sistematicamente explorados sob diversos ângulos, no contexto do desencanto com o cotidiano que marca a cultura infoglobal. A ambiência metropolitana e o estilhaçamento composicional são o cerne tradicional modernista a partir do qual Alcides movimenta uma "maquinaria" (p. 20) de êxito incerto, mas que "não arrebenta" e é capaz de desmecanicizar a percepção: "Mal consigo ler / a cidade no meio das letras / (...) // Há muitos destroços / de palavras e luzes, (...) / cobrindo o coração. // (...) // Se houver um desabamento / o poema ficará no ar / (...) // (...) Mas os letreiros, não." (ps. 30-31). Este poema, intitulado "Um 'slide'", manifesta uma concepção do texto como veículo para novas visões ("Ponho este poema - um / slide - deitado na linha do horizonte"), atitude evidente em imagens como o "tapa-olho" (p. 20), o olho que "não era de vidro" (p. 32), os "óculos escuros" (p. 33), o "olho na câmera lenta" (p. 67) ou no poema "Televisão à janela: parapeitos" (p. 55). O gesto insurreicional contra a ordem constituída também sustenta o interesse dos textos por serem eles convites a que o leitor participe de sua elaboração, instando-o a lê-los como ocorrências de linguagem que aludem à dialética entre precariedade e integridade subjacente à relação do homem com o mundo (o próprio "Um 'slide'", o imperativo "se espete" do poema "Vodu", o poema "Jogo dos sete erros") ou que tangenciam a reflexão política ("se não invadirmos o passado / como diremos que é nosso?", p. 41). O sujeito poético circula entre as ruínas do espaço público com uma voz oblíqua, composta dos resíduos que vai encontrando em seu trajeto: o "velho cheiro" (p. 17), "a frasqueira onde viaja / o remédio" (p. 23), "o cavalo em pedaços" (p. 29), as partículas sonoras da "Valsa de uma cidade" (p. 38), o "fio caído" da fantasia genética de "Hello Dolly" (p. 60), "um fio de cabelo a mais (ou menos)" (p. 61), "um fio a menos" (p. 62). Porém há sinais de que não é possível reconstruir uma apreensão plena da realidade: "Suponho que tem um coração (e erro)" ("Um 'slide'", p. 30), "Não vejo maravilha" ("Não Vermeer", p. 54), "Não conheço restauração / nem laboratório de recomeço" ("Arruína", p. 62). A estrutura geral do trabalho é circular, cenas e episódios girando em torno uns dos outros e abrindo, por efeito cumulativo, um terreno movediço para o discurso de Sérgio Alcides se instalar. Em 2007 "O ar das cidades" teve uma segunda edição, eletrônica, gratuita, oferecida pelas Edições Quem Mandou? e acrescida de quatro poemas ("Candeias", "Cama de gato", "Sonhos" e "Graças").

pós-escrito em 18 de maio: as anotações acima foram publicadas na edição de maio de 2009 da revista virtual de cultura literatura Verbo 21.