Descobrindo o mundo e suas bibliotecas
Devo à Biblioteca Municipal de Petrolina, no interior de Pernambuco, o fato de ter me apaixonado por literatura ainda na infância. Graças a meu pai e minha mãe, livros sempre fizeram parte de meu mundo: nossa casa tinha volumes espalhados por todos os lados e eu sempre tive acesso a obras infantis ilustradas e histórias
Foi nessa biblioteca que, já ousando iniciar-me nos tortuosos caminhos da poesia, cometi meu primeiro e único roubo de um livro: um dicionário de rimas, que, num descuido dos funcionários do setor de livros adultos, atirei pela janela e fui buscar no meio do mato que ficava atrás do prédio. (Logo depois, ao ensaiar alguns versos, a facilidade artificial das listas de rimas do dicionário me incomodou e devolvi o volume à prateleira da biblioteca, decidido a buscar minhas rimas por conta própria, recorrendo à memória e à intuição.)
A segunda biblioteca que freqüentei foi em Salvador, durante o terceiro ano colegial, no antigo Colégio Alfred Nobel. Era apenas uma modesta biblioteca escolar, mas que contribuiu sobremaneira com a minha formação literária por conter (o que hoje me parece surpreendente) alguns livros com a poesia marginal de Leminski, Waly e Chacal, entre outros, que, junto com as melodias impecáveis de Cecília Meireles, me fizeram negligenciar os estudos para o vestibular.
Em 1993, fui parar na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, ao mesmo tempo em que também começava a desbravar o centro da cidade de Salvador. Antes de passar a freqüentar a “Biblioteca dos Barris”, meu circuito cotidiano era muito restrito, indo somente do Candeal (onde morava) ao Itaigara (onde estudava). Daí em diante, meus horizontes se alargaram radicalmente. No setor circulante da biblioteca, mergulhei em ficção brasileira pós-moderna, com Rubem Fonseca, Sérgio Sant’anna, Moacyr Scliar, João Gilberto Noll e muitos outros. Em plena adolescência, a “Biblioteca dos Barris” representou para mim tanto a descoberta da literatura brasileira contemporânea quanto a descoberta do centro da grande cidade para onde me mudara no começo da década e que ainda não conhecia propriamente.
Dentre todas as leituras que fiz nesse período, a que mais marcou minha trajetória de leitor e aspirante a escritor foi certamente “Cara-de-Bronze”, de Guimarães Rosa. Esse texto, que pertence ao livro “No Urubuquaquá, no Pinhém”, é uma estranha mescla de conto, poema, roteiro de cinema e experimentalismo sem concessões. É nele que aparece o famoso neologismo multi-idiomático “moimeichego” (junção das palavras “moi” + “me” + “ich” + “ego”, correspondentes ao pronome “eu” em francês, inglês/espanhol, alemão e latim).
“Cara-de-Bronze” conta a história de um velho fazendeiro que dá ordens a um de seus vaqueiros para que percorra os sertões de Minas Gerais em busca do misterioso “quem das coisas”, algo que o narrador jamais explica o que seja, mas que implicitamente compreendemos: “O que não se vê de propósito e fica dos lados do rumo. Tudo o que acontece miudim, momenteiro. Ou o que vive por si (...) Uma virtudinha espritada, que traspassa o pensamento da gente – atravessa a idéia (...) E bonitas desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade. (...) Não-entender, não-entender (...) o quem das coisas! (...) o que no comum não se vê: essas coisas de que ninguém faz conta... (...) Tirar a cabeça, nem que seja por uns momentos: tirar a cabeça, para fora do dôido rojão das coisas proveitosas.” (Guimarães Rosa, “Cara-de-Bronze”)
Todas essas definições ou descrições se aplicam à própria poesia, o que torna “Cara-de-Bronze” uma espécie de declaração de princípios rosiana – com direito a um conselho quase didático: “(...) ver, ouvir e sentir. E escolher (...)”. Essa leitura me deixou perplexo e apontou rumos que persigo até hoje em minha escrita pessoal. O apagamento das fronteiras estilísticas entre conto, poema e outras formais textuais, manifestado por “Cara-de-Bronze”, é um traço presente em tudo o que tenho escrito. Até mesmo meu trabalho com literatura de cordel é fruto de um desejo de combinar poesia e narrativa no mesmo texto.
Anos depois, tive a satisfação de descobrir uma biblioteca pública no novo bairro para onde tinha me mudado: a Biblioteca Thales de Azevedo, no Costa Azul. Lá deparei-me com o indispensável “Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira”, de Paulo Prado, um breve estudo de 1928 sobre a formação da identidade e o perfil psicológico do nosso povo. Depois vieram outras bibliotecas, em outras cidades, pois visitas a bibliotecas são sempre um item indispensável em meus roteiros de turista nas viagens que eventualmente tenho a oportunidade de fazer. Para um leitor compulsivo, viajar também é passar uma ou duas tardes explorando os acervos da Biblioteca Nacional e do Gabinete Portuguez de Leitura (no Rio de Janeiro), da Biblioteca Sergio Milliet do Centro Cultural Vergueiro (São Paulo), da Biblioteca Municipal e Central de Lisboa, da Biblioteca Municipal Camões (Lisboa), da sofisticada Biblioteca Municipal Almeida Garrett (n’O Porto) ou da labiríntica New York Public Library.
Hoje já tenho minha própria biblioteca particular, com uma quantidade considerável de livros que ainda não li e que venho percorrendo aos poucos. A correria da vida cotidiana e as distâncias urbanas (trabalho no aeroporto) não mais permitem que eu freqüente a “Biblioteca dos Barris” com a mesma assiduidade que há 10 anos. Mas tenho um grande motivo para ainda freqüentar a “Biblioteca dos Barris” esporadicamente: o raríssimo romance “Riverão Sussuarana” (Record, 1977), de Glauber Rocha, do qual há um exemplar num setor da biblioteca onde os livros só podem ser consultados no próprio local. Sempre que posso, vou lá, nas manhãs de sábado, para ler mais algumas páginas dessa que é a única obra de ficção publicada por Glauber (e que, tal como “Cara-de-Bronze”, também é um texto fronteiriço, com elementos de romance, depoimento autobiográfico, roteiro de cinema e experimentações variadas). O livro (infelizmente) nunca foi reeditado e o exemplar da “Biblioteca dos Barris” deve ser um dos poucos (se não for o único) em um acervo aberto ao público, em toda a Bahia.
Dicas de leitura:
“No Urubuquaquá, no Pinhém”, de João Guimarães Rosa (Nova Fronteira)
“Riverão Sussuarana”, de Glauber Rocha (Record, 1977)
Texto encomendado, há alguns meses, por Mayrant Gallo para uma publicação que acabou não vingando