trechos do caderno "van gogh"
(...) já sobrevoamos o oceano, agora o continente. as águas de um rio barrento arreganham garras vermelhas, cravadas na terra verde. uma cidade (qual?) ocupa as duas margens de um outro rio e a ilhota entre elas, totalmente urbanizada. (...)
24.2.2008.
(...) de outras vindas ao rio, explorei copacabana, niterói, ipanema e santa teresa. a lapa é o ponto de partida agora. domingo de ruas vazias no centro sujo e pobre, durante meu tradicional passeio sozinho. (...) toda viagem é pontuada por coletas, ao final do trajeto rastros congelados em objetos: fotografias, folhetos, livros, recortes de jornal. suei sob o ar abafado, pés cansados do giro a esmo. carioca, cinelândia... (...)
25.2.2008.
no gabinete portuguez, localizo uma "antologia de páginas íntimas" de kafka (seleção, prefácio e tradução de alfredo margarido, guimarães editores, 1961, lisboa, rua do diário de notícias, 61), com trechos dos diários de 1910 a 1923. copio sempre as anotações em que kafka reclama de como escrever é difícil: "nem uma palavra, quando escrevo, se conjuga com outra, ouço as consoantes chocarem-se, soando ocas" (1910, p. 38), "um conhecimento de nós só poderia ser definitivamente fixado por notas se tal pudesse fazer-se com a maior integridade, até nas menores consequências, ao mesmo tempo que com a mais inteira veracidade. isso não se faz de modo algum - e sou em todo o caso incapaz -, então, o que se anotou substitui, intencionalmente e com toda a força do que é fixado, o sentimento puramente geral, tanto e tão bem que o justo desaparece, enquanto se reconhece demasiado tarde a não-valia do que se anotou" (1911, p. 45), "tenho a crença infeliz de que não disponho de tempo para realizar o menor trabalho válido, porque, para escrever uma história, não tenho verdadeiramente tempo de me dispersar em todas as direções, como seria necessário. de novo sou levado a crer que a minha viagem poderia efectuar-se melhor e que saberia apreender melhor as coisas se me libertasse, escrevendo um pouco e é por isso que tento novamente" (1911, p. 56), "tudo está preparado em mim para um grande trabalho poético e (...) semelhante trabalho seria para mim uma divina solução e um autêntica entrada na vida, enquanto aqui no escritório devo, em nome de uma miserável papelada, arrancar um pedaço de carne a este corpo" (1911, p. 65), "carne crua" (p. 65), "carne cortada em mim (tanto esforço me custou encontrá-la)" (p. 65). a "carne" a que kafka se refere na última citação é a palavra, não a palavra poética, mas o jargão jurídico usado profissionalmente como funcionário da companhia de seguros. (...) no salão de leitura da biblioteca nacional (...) trouxeram-me "diário de viagem" (kafka, traduzido do alemão por marcelo rouanet, organização, prefácio e notas por cecília prada, ed. atalanta, são paulo, 1998), livro que eu não conhecia, e, também novo para mim, "diários" (tradução de torrieri guimarães, ed. itatiaia, belo horizonte), seleção de trechos diversa da que encontrei pela manhã. comecei a ler este último, a partir de 1912. às vezes, kafka parece entusiasmar-se com sua produção e reconciliar-se com a escrita, como quando relata o processo criativo do conto "o veredito": "todas as coisas podem ser ditas, todas as idéias que chegam ao espírito, por mais abstrusas que sejam, são aguardadas por um enorme fogo onde sucumbem e ressuscitam" (1912, ps. 91 e 92 da tradução de torrieri). em outro momento, "minha capacidade de escrever perde-se" (sem data, p. 166 da tradução de torrieri), anota kafka. outros tópicos que também poderiam ser pesquisados em seus diários: a solidão, a tensão entre o trabalho no escritório e o trabalho literário. as edições em português que até agora encontrei são seletas dos diários completos, não contém o texto integral que achei em alemão (ICBA, salvador) e em francês (gabinete portuguez, rio).
26.2.2008.
encontrei ainda "o diário íntimo de kafka - único e exclusivo" (tradução de oswaldo da purificação, nova época editorial, sem data), no instituto goethe (rua do passeio), também uma coletânea de passagens do diário, com a curiosidade de que elas vêm sem ano (exemplo: "domingo, 19 de julho"). esta biblioteca tem todas as versões dos diários de kafka já citadas, sendo que a "antologia de páginas íntimas" em reedição de 1997. (...) a história de minha perseguição aos escritos pessoais de kafka continua na biblioteca rodolfo garcia, da academia brasileira de letras (avenida presidente wilson, 231), onde se encontra "franz kafka en testimonios personales y documentos gráficos", de klaus wagenbach (alianza editorial, madrid, 1970), biografia curta, com fotos, sem grandes atrativos. (...)
27.2.2008.
o diário de leituras avança, plenamente instalado no cotidiano literário que criei aqui no rio de janeiro. o aspirador de pó do gabinete portuguez agride o ambiente, pára de fazer ruído, recomeça a zunir, quebra minha introspecção. "e a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar esta prosa travada, mais circunlóquio menos circunlóquio, esta prosa perra e oca" (miguel torga, diário, I, 1932). fui atrás de outras traduções para os trechos dos diários de kafka copiados dois dias atrás: "nem uma palavra, à medida que eu escrevo, conjuga-se com outra, escuto consoantes que se chocam, soando ocas" (1910, p. 28 da tradução de torrieri), "um conhecimento de nós próprios apenas poderia ser definitivamente fixado através de notas se isso se pudesse fazer com a maior lisura, mesmo nas mais ínfimas consequências, do mesmo modo que com a mais completa veracidade. isso não é feito de maneira alguma - e sou de qualquer modo incapaz - então, aquilo que se anotou, substitui, com intenção e com toda a força do que é fixado, o sentimento puramente geral, tanto e tão perfeitamente que o sentimento exato deixa de existir, enquanto se reconhece muito tarde a não validade daquilo que se deixou anotado" (1911, p. 37, id.), "o sentimento aterrorizador de que tudo está preparado em mim para um enorme trabalho poético e de que tal labor seria para o meu caso uma solução divina e uma verdadeira entrada na vida, ao passo que aqui no escritório devo, em nome de uma ínfima papelada, cortar um pedaço de carne a este corpo" (1911, p. 54, id.), "tenho a desgraçada intuição de que não disponho de tempo para concluir o menor trabalho válido, pois, para redigir uma história, não tenho realmente tempo de me dispersar em todas as direções, como necessitaria. outra vez sou induzido a acreditar que a minha viagem poderia realizar-se melhor e que aprenderia a compreender melhor as coisas se me libertasse escrevendo algo e é por esse motivo que eu tento outra vez" (1911, p. 46, id.).
29.2.2008.
sigo sempre meio à margem, no anonimato, nômade, fingindo-me invisível para não ser notado. capturo uma definição para os diários de leitura dos diários de kafka: "kafka 'antecipou' tanto o modo quanto as principais consequências dessas irrupções ['bruscas irrupções do acaso na vida cotidiana'] que dilaceram as ilusões de segurança manipulada, plasmando assim (...) o modo pelo qual a vida humana, em particular aquela do homem comum, é afetada pelas novas características da alienação capitalista" (carlos nelson coutinho, "lúkács, proust e kafka - literatura e sociedade no século XX", civilização brasileira, 2005, p. 154).