Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Sunday, February 07, 2010

Estou andando a pé por uma cidade impossível de se andar a pé. Que lugar incrível. As vozes na rua são vozes de outro planeta. A sensação é de que estou ouvindo um bando de estrangeiros que de repente aprendeu a minha língua. Ando e penso. Não paro em lugar nenhum. São todos iguais. Cadê o teu dinheiro, São Paulo? (...) Minha miséria atual me obriga a depender de ti (...). Também preciso viver. Preciso fazer uma porção de coisas faturáveis. Tenho tarimba, meu chapa. Conheço alguns macetes.”

(Antônio Torres, em “Um cão uivando para a lua”, 4ª. ed., 2002, ps. 93-94)



Primeiro livro de Antônio Torres, “Um cão uivando para a lua” (1972) centra-se nas desventuras do jovem jornalista T., nordestino vindo do interior para o eixo São-Paulo-Rio-de-Janeiro, no tempo do “Milagre” econômico sob o regime militar. A construção vertiginosa da narrativa – com saltos temporais repentinos e justaposições de monólogo interior, diálogos sincopados e cenas realistas ou alegóricas –, manifesta no próprio texto o estado mental do protagonista, que reprocessa seus 30 anos de vida enquanto se recupera de um colapso nervoso (“um curto-circuito milagroso”, p. 22), voluntariamente internado num sanatório. Paralelamente, o romance intercala momentos de um outro personagem, A., espécie de duplo bem-sucedido de T. que, movido por laços de amizade e reconhecimento profissional, tenta convencê-lo a sair da clínica e aceitar um emprego numa rede de televisão. Em contraste com o confinamento físico a que se submete em seu período de crise psíquica, T. recorda alguns de seus deslocamentos através do país, tanto a trabalho (como no caso da ida ao Ceará ou da travessia da então recém-aberta rodovia Belém-Brasília) quanto numa espécie de versão particular do “desbunde” tão em voga naquela época (a frustrada tentativa de regresso à cidade natal, de carro, pela Rio-Bahia). A relativa reconciliação do protagonista com a “confusão gigantesca” (p. 132) e a “insensibilidade das grandes metrópoles” (p. 161) ocorre, no final do livro, depois de um passeio a pé de Botafogo a Ipanema e do encontro com figuras urbanas emblemáticas (o engraxate, o taxista), que, com histórias pessoais de pobreza, desemprego, resignação e violência, fazem-no reconsiderar sua própria situação: “A cada passo crescia dentro de mim uma nova espécie de torpor. O que é que eu posso fazer aqui fora, no meio de tanta loucura? Os automóveis estão loucos, os táxis estão loucos, os ônibus loucos, as motos loucas, os homens na rua estão loucos. Mas quem está confinado num sanatório? Quem é, oficialmente, com registro e tudo, louco? ” (p. 137). A edição que li (a 4ª, de 2002), contém um prefácio do autor sobre as condições em que o livro foi escrito e publicado (uma entrevista sobre o mesmo assunto pode ser lida no sítio virtual de Antônio Torres).