Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Tuesday, September 18, 2007


[Excertos do caderno “Fernando Pessoa”:]

Vôo Brasília-Salvador, depois de reunião de treinamento na empresa, numa passagem tão rápida, desta vez, que mal pude ver a cidade, ver mesmo no sentido superficial da palavra, apesar da varanda do quarto de hotel virada para o Eixo Monumental. (...) no que mais fiquei pensando foi o efeito da passagem do tempo na formação dos indivíduos, a forma como temperamento, origem, oportunidades, aptidões determinam nossas escolhas e nos conduzem por caminhos cujos desdobramentos não podemos prever. Quem seria eu hoje, se, no começo de dezembro de 1988, meus pais não tivessem me resgatado da falta de perspectivas de futuro do sertão pernambucano para terminar o ginásio na capital da Bahia? Que pessoa eu teria me tornado se eles tivessem dado ouvidos à minha sugestão de que a família não se mudasse para Salvador, mas para Brasília (influenciado que eu estava, aos 12 anos, pela geração de bandas de rock do Distrito Federal)? Penso sempre nisso, e (...) sinto que eu e Brasília temos "unfinished business" (negócios pendentes), ou seja, às vezes tenho a impressão de que ainda morarei nela um dia, em busca de uma parte de meu destino, que lá deixei de buscar, há quase 20 anos. Eu estava a fim do rock and roll, não estava a fim de estudar. Se não tivesse saído de Petrolina, teria sucumbido ao desterro de dias sem horizonte, de algum subemprego? Nem consigo imaginar o que teria sido não ter saído de Petrolina; não posso negar que quero o que não foi Brasília. Hoje Brasília já está favelizada. E por acaso não há degeneração em mim, exatamente agora, no instante em que escrevo isto? É impossível fugir da miséria? Ou teria eu progredido comercialmente em Petrolina, politicamente em Brasília? Trabalharia num jornal de cidade interiorana, na sede de um órgão da União? Teria eu caído pro lado da música, caso qualquer distúrbio físico não inviabilizasse tal possibilidade? As cidades se amoldam a seus habitantes e sabem estar ou não estar prontas para nos receber. Certamente que Salvador me acolheu e me catapultou para a cultura, mas, não sendo para mim o lendário lar definitivo dos que se aferram à pátria nativa ou a pátrias adotivas, Salvador também poderia ter me rejeitado! E como teriam se comportado Petrolina, caso continuada, ou Brasília ou qualquer outra localidade, caso para elas eu migrasse? Como serão as cidades para onde ainda irei?

Monday, September 17, 2007

O Porto

Aquela gaivota sou eu e quem foge de eu é eu também
(António Lobo Antunes)


1. Quatro badaladas abafadas na madrugada d’O Porto... Mas o som mais característico da cidade são os alaridos das gaivotas, que podem ser escutados até tarde da noite e permeiam a vida à beira do Rio Douro de águas verde-escuras, “que a certas horas lembra um rio de luz a correr” (Miguel Torga, Portugal). “O rio, liso e espelhado como uma chapa de vidro azul e verde. Uma extensa cordilheira de colinas, cobertas de pinheirais e desenhando no espaço vaporoso e húmido as curvas mais suaves e as perspectivas mais graciosas e mais risonhas...” (Ramalho Ortigão) “O Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. (...) o seu aspecto é severo e altivo (...)” (Alexandre Herculano), “(...) espraiado na sua encosta, firme, amplo (...)” (Miguel Torga, Portugal) “Um eminente historiador de arte em Portugal disse que o Porto é essencialmente barroco. Se nos referimos ao tumultuoso aspecto exterior da cidade, quando de longe a vemos alevantar-se sobre fragas e arrojar estrada sobre os abismos do Douro, dramática e ardente (...), o asserto é verdadeiro. Mas, se o entendermos na essência do barroco, estilo artificioso e teatral do absolutismo e da contra reforma, o qualificativo é eminentemente impróprio. Visto em substância própria e histórica, o Porto é românico, franciscano e democrático.” (Jaime Zuzarte Cortesão, 1884-1960).

2. No Cais da Vila Nova de Gaia, com o cair da tarde, os anúncios luminosos das caves de vinho vão se acendendo, um por um, a longos intervalos: Offley, Sandeman, Calém, Noval, Ferreira, Cruz, Ramos Pinto, Cockburn’s, Dow’s, Graham’s, Delaforce, Croft, Taylor’s, Barros... Depois que a noite desce, as palavras formam como um poema concreto, se lidas da esquerda para a direita, a partir do Cais da Ribeira, n’O Porto: Calém, Noval, Sandeman, Delaforce, Croft, Taylor’s, Offley, Dow’s, Ramos Pinto, Barros, Cockburn’s, Cruz, Ferreira, Graham’s, Fonseca...

Thursday, September 06, 2007

Lisboa


PRIMEIRO ATO


“(…) capital do nada
(Miguel Torga, Diário VI)

Lisboa é um peso na memória
(stencil numa parede da Calçada do
Marquês de Tancos, bairro de Alfama,
Lisboa)


O Airbus 330 da TAP “Pedro Álvares Cabral” foi a nave que me levou, por cima de um oceano Atlântico sacudido por “zonas de turbulência”, ao Velho Mundo. O Aeroporto de Portela de Sacavém, a sete quilômetros do centro de Lisboa, inaugurou há poucos dias seu segundo terminal e é “um aeroporto que, oficialmente, só tem mais uns anos de vida” (segundo artigo de Miguel Sousa Tavares publicado na edição de 11 de agosto de 2007 do jornal Expresso). Planeja-se um novo aeroporto para a capital portuguesa, em local ainda não escolhido.

Quarteirões vazios de carros e de gente nesta manhã de sábado, em torno da Praça Marquês de Pombal, centro financeiro de Lisboa. Do alto dos jardins do Parque Eduardo VII tenho minha primeira visão do rio Tejo, de “estuário largo e majestoso, fundo e aconhegado” (Miguel Torga, Portugal), ao fim da colina suavemente inclinada por onde desce uma avenida Liberdade ampla e arborizada. Sigo por essa via em direção ao “cais do mundo” e meus olhos então

“(...) Começam de enxergar subitamente
Por entre verdes ramos várias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não eram das rosas ou das flores.
Mas de lã fina e seda diferente
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas
Fazendo-se por arte mais formosas


(Luís de Camões)

São elas, as viajantes de muitos lugares e línguas, vagando no circuito entre as praças dos Restauradores e do Comércio, à beira-rio, em meio às “pombas turísticas, que afinal não voam e só servem para sujar o mosaico” (Miguel Torga, Portugal).

No miradouro com uma estátua do gigante Adamastor e uma vista para a ponte 25 de Abril, fico-me sob o sol escaldante a beber um chopp (aqui se diz “imperial”) da marca Sagres, quando surge um bando de ianques e franceses com crachás da Microsoft, cheiro de protetor solar e carrinhos-de-bebê. O esbanjamento de euros da classe média do continente em férias de verão, propiciado pela forte moeda comum, convive paficamente com pobres pedintes por toda parte, como, por exemplo, na rua Augusta, que se mostra um tanto decadente, os pilantras mercando drogas à porta de restaurantes caros cujas sardinhas têm uma aparência estranha (suas entranhas são estranhas) e parecem ter sido pescadas num esgoto da baía de Setúbal – “no mar”, conforme venho a saber pelo garçom brasileiro. (E então, pá!? Há muitos brasileiros garçons.)

No feriado da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto), a situação no bairro de Belém chega a ser intolerável: turistas, em flagrante excesso, picnicam na Praça Afonso de Albuquerque e deixam lixo no jardim público, sujam o Tejo com garrafas de plástico, cacarejam interjeições estúpidas e congestionam lanchonetes e acessos a sítios históricos, uma horda desordenada de saqueadores de paisagens, fotografando e filmando com compulsão.

Para livrar-me por um momento os ouvidos e as vistas de suas presenças, fecho-me na guarita frontal direita da bateria alta do Baluarte do Restelo (a Torre de Belém, ou de São Vicente, fortificação construída no início do século XVI para a defesa da barra do Tejo), logo acima das águas verdes brilhando ao sol alto, bem diante das fraldas verdes da margem sul do rio, os “arvoredos da outra-banda” (Alberto Pimentel, Fotografias de Lisboa, p. 21), onde são terras de Almada, fruindo o vento frio que vem do leste e segurando com força a folha em que escrevo para que não voe. Os minutos passam e não me mexo, sentinela a espreitar um possível ataque inimigo que porventura surja a montante, e eu insisto mais alguns instantes na função de defender este silêncio e este sossego tão a custo conquistados, no cais de onde partiram as frotas que descobriram o caminho das Índias (1498) e o Brasil (1500).

Depois subo as vielas estreitas, inclinadas e labirínticas do antigo bairro árabe de Alfama, até o Castelo de São Jorge, de onde se tem a vista mais privilegiada do centro histórico da cidade, os telhados avermelhados do casario da Baixa, do Chiado e do Rossio se distribuindo calculadamente, entre as praças do Comércio e Dom Pedro IV, em quarteirões simétricos, à frente de tudo, o Tejo azul-claro imenso e manso, sobre cuja “toalha límpida (...) cai a luz a jorros (...)” (Miguel Torga, Portugal)...

Eis “Ulíssia” (cidade de Ulisses), a “Alis Ubbo” dos fenícios, a “Olisipo” dos romanos, a “Al Uzbuna” islâmica do século XI, precursora da globalização, “terra de encruzilhadas da História” (Miguel Torga, Portugal), “cidade da opulência, do tumulto e da pobreza” (Alberto Pimentel, Fotografias de Lisboa, p. 122).

“(...) É Lisboa um mar profundo
De vária navegação;
É um compêndio do Mundo,
Aonde tudo acharão;
Ásia, África, Europa,
Nova Terra, Mundo novo;
Comércio, nobreza, povo,
Tudo se anda a vento popa
.

Ali achareis o Indiano,
o Japão, o Pérsio, o Chim,
o Turco, o Mouro, o Marrano,
o Moscovita, o Estrelim;
Ali o dano e o proveito,
Bem, mal, gostos e trabalhos,
Festas, músicas e balhos,
O singelo e o contrafeito.
(...)”

(André Falcão de Resende, 1528-1598, Cancioneiro de Lisboa – Séculos XIII-XX, vol. 1, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa)

Toda esta gente que, de partes várias,
Correndo por caminhos diferentes,
(...)
Assim se junta nessa triunfadora
Cidade do larguíssimo Oceano;
(...)
Nessa do Mundo principal Senhora,
Que ao Céu levanta o nome Lusitano;
Por armas suas uma Nau pregoa,
Que dois corvos discorrem, popa à proa.


(Vasco Mouzinho de Quevedo, 1575-1620, Cancioneiro de Lisboa – Séculos XIII-XX, vol. 1, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa)


SEGUNDO ATO

“(...) às vezes sou cativado por uma
imagem, um detalhe, e perco
completamente o curso da narrativa. (...)
Uma vez dissecada e incorporada num
outro contexto ela torna-se novamente num
‘alvo virgem’.
(Noé Sendas, artista plástico
português nascido em 1972).

Dois corvos. O brasão da cidade de Lisboa é representado do seguinte modo: “um barco negro realçado a prata, por fora; no interior do barco é preta realçada de negro. Os mastros e cordas são de negro com uma vela ferrada de cinco bolsas de prata. À popa e à proa dois corvos negros. Leme negro realçado de prata. O barco está assente num mar representado por sete faixas, onduladas, sendo quatro de cor verde e três de prata. Coroa mural de ouro de cinco torres. Ostenta ainda o colar da Torre e Espada. Listal branco com os dizeres a negro: ‘MUI NOBRE E SEMPRE LEAL CIDADE DE LISBOA’.” (Gentil Marques, Lendas de Portugal, Porto, 1965, vol. IV, ps. 157-164.)

Os dois corvos recordam o episódio lendário das aves que, em 1173, dizem ter sinalizado o local onde estavam ocultas as relíquias do mártir São Vicente de Saragoça (morto no ano 304), que tinham sido levadas por cristão fugitivos de Valência (aquando da ocupação da cidade pelo muçulmano Abderrahman I, primeiro emir da península Ibérica, onde reinou durante 31 anos), inicialmente para o Algarve, ao sul, onde o depositaram no promontório que então passou a ser conhecido como Cabo de São Vicente, e depois para Lisboa (aquando de sua reconquista pelo cristãos liderados por Dom Afonso Henriques, em 1147), onde o puseram na Igreja de Santa Justa, depois na Sé Catedral, até que o terremoto de 1755, com o incêndio que provocou, tudo levou e destruiu. (Gentil Marques, id., ibid.)

TERCEIRO ATO

“(…) sendo uma viagem uma novela em
acção, vem incorporar-se ao plano geral, como
nos romances, um sem-número de episódios
imprevistos, que são sempre os melhores
(Alberto Pimentel)

A good traveller is one who does not know
where he is going to, and a perfect traveller does
not know where he came from
(Lin Yutang)


Há uma “Noite de observação”, no Observatório Astronômico de Lisboa, na Tapada da Ajuda, no alto de um morro com uma grande área verde pertencente à Universidade de Lisboa. A sessão de observação astronômica será ao ar livre, no escuro total, num pátio entre o prédio (construído entre 1861 e 1876) e as árvores enegrecidas. Três jovens pesquisadores estão a montar o equipamento, dois telescópios e dois computadores. Vemos a constelação de Escorpião, e, nela, o planeta Júpiter (ou melhor, a luz do sol refletida nele) e aprendemos sobre o nascimento e a morte de uma estrela, sobre a origem de nossa galáxia e do sistema solar, sobre o cinturão de asteróides entre Marte e Júpiter, sobre a recente exclusão de Plutão da categoria de “planeta”. As pessoas são vultos na penumbra, as luzes dos monitores e alguns astros cintilam no breu, de vez em quando um avião corta o céu, na rota para o pouso em Portela. “(...) No fundo, os aviões que chegam constantemente à Portela são o regresso das caravelas que partiram. Vasco da Gama reincarnou modernizado e universalizado nos pilotos de agora (...)” (Miguel Torga, Diário IV, 1949).

GAIVOTAS 3

Duas gaivotas se cruzam
num cais, possível esquina
ou desacerto de ruas,
e o céu é duplo, cinzazul.

Como a noite vem, severa,
separar suas venturas,
produzem sílabas ásperas,
rogos, avisos, perguntas.

(do livro “Macromundo”, 2010)