Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Friday, May 27, 2005

Notas à "Introdução" de "A arqueologia do saber", de Michel Foucault

O autor atesta o impasse enfrentado em todos os ramos do conhecimento diante da desconstrução - efetuada por Marx, Nietzsche, Freud e alguns historiadores, linguistas e etnólogos - da concepção metafísica da auto-suficiência do sujeito da razão no desenvolvimento de um saber organizado sobre o mundo e a humanidade.
Assim como as outras ciências ditas humanas, a história carece de uma revisão epistemológica que (partindo do próprio interior de sua atividade investigativa e conceitual) esclareça equívocos, usualmente desapercebidos pelos pesquisadores, em afirmações aceitas como científicas, mas eivadas de noções infensas à objetividade, e aponte caminhos para que o trabalho de descrição das condições da vida das sociedades do passado possa prosseguir, aprimorado e mais condizente com as novas concepções filosóficas a respeito da existência e da cognição.
Foucault sintetiza sua argumentação numa inversão de foco do uso de monumentos e de documentos, definindo-os respectivamente como objetos de estudo da arqueologia e da história.
A nova história deve encarar os textos e registros da operosidade humana nos campos da economia, religião, política, arte, ciência e assim por diante, não como documentos, que conteriam um "arquivo" fiel da vida como era quando de sua redação, mas como monumentos, que precisam ser inseridos numa reconstituição dos fluxos de pessoas ao seu redor para voltar a manifestar o sentido de sua existência prática. Teria de ser, portanto, uma história tributária aos ensinamentos da arqueologia, como ciência e prática de preencher os vazios abertos nos objetos pela passagem do tempo, interpretando os textos deixados por nossos antepassados com desconfiança e malícia bastantes para reconhecer o ranço incoveniente - não-pronunciado, devido à interdição de ideologias de classe - que se manifesta no discurso dos interlocutores (cientistas, sociedade civil, instituições públicas, minorias e indivíduos).
Considerando o caráter "documental" do texto de qualquer filósofo ou pensador, Foucault propõe uma releitura rasurante de autores como Marx e Nietzsche. O trabalho deles precisaria ser reenquadrado e repensado como índices de suas existências pessoais, resgatados como "monumentos" eles mesmos de um momento específico de uma dada sociedade, para que os pesquisadores (ampliando o seu distanciamento para com os indivíduos como se distanciam os arqueólogos, não os historiadores) contornem o impulso conservador que pôde se apropriar das descobertas de Marx e Nietzsche e reduzir o alcance de suas consequências, refinando o método e o resultado do trabalho acadêmico e formulando respostas menos satisfeitas com verdades consensuais.

Tuesday, May 10, 2005

quando vim parar neste labirinto, uma das primeiras providências que tomei foi tatuar uma bússola de cristal líquido no pulso esquerdo, que me desse os pólos, que pela agulha me orientasse, rosa-dos-ventos por dentro da pele, do mármore-granito-e-bronze do marco zero decalquei a posição em que meu braço se ajustaria ao desmantelo da mega-aldeia em que morava agora, por ela absorvido, o corpo furando a fumaça de churrasco da praça, errando ao pensar que conseguiria ainda me desvencilhar do olho do furacão, não estivesse eu em diáspora privada, satelitizado entre encruzilhadas, contra as retinas seta após seta indicando as coordenadas, as veias transbordando em ruas, a magnetita de tinta apontando a meus passos o rumo por entre as torres-de-babel, partindo da sé para quatrocentos cantos cardeais a tartaruga-serpente negra guardiã do norte, nos sulcos do metal sobre o pedestal previstas saídas para o rio, as minas gerais

Sunday, May 08, 2005



O mato-grossense Manoel de Barros, 89 anos, pertence àquela classe de escritores dos quais se costuma dizer que vivem a reescrever o mesmo livro ao longo de toda a sua obra. Em "Poemas rupestres" (Record, 2004, 80 páginas), 21º título da bibliografia do poeta, ele retorna aos elementos que marcam seu trabalho desde a primeira publicação, em 1937: a paisagem do Pantanal, a infância, a relação misteriosa que existe entre as coisas e os nomes que damos a elas.
Para o leitor já familiarizado, não há nada de novo nos 23 textos do volume. Sua leitura, porém, surpreende - tanto a quem conhece quanto a quem trava um primeiro contato com o autor - pela inventividade com que ele aborda a natureza e os habitantes da região onde vive, conferindo-lhes alcance universal.
A poesia se torna uma forma privilegiada de acesso ao mundo, por ser fundada no encantamento. Na contramão da lírica convencional, contudo, Manoel de Barros fala de um encantamento por tudo o que à primeira vista parece desprezível: para o olhar do poeta, beleza e verdade podem ser encontradas numa lata jogada no lixo ou numa perna de formiga agonizante. Trata-se do que, em outro livro, ele chamou de "grandezas do ínfimo".
Explorando as fronteiras entre os reinos animal, vegetal e mineral, o autor encontra iluminações insuspeitas - como o poste que se transforma numa árvore. Revolvendo os detritos da linguagem, entre arcaísmos e neologismos, ele descobre "uma natureza que pensa por imagens" (p. 45) - como as figuras que o homem pré-histórico pintou na pedra.