Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Tuesday, January 19, 2010

GAIVOTA / GAVIOTA

o velho comparsa Guilherme Darisbo fez outra versão em espanhol do meu pequeno poema "Gaivota" (de "Microafetos", 2005), bastante diferente da que foi feita por Antonio Carlos de Oliveira Barreto e Paula Ruth. sem mais comentários, publico abaixo (para efeito de comparação) o poema original, seguido das duas versões em espanhol.

GAIVOTA

Embora sobrevoe
avenidas e praias
de várias cidades,
atravesse vales
situados longe
e só volte ao mar à noite,
a gaivota gaiata
avista apenas mapas.


Wladimir Cazé


GAVIOTA

Aunque ella vuele
por calles y playas
de tantas ciudades,
travese los valles
muy lejos de aquí
y vuelva al mar solo a la noche,
gaviota chistosa
ve solo los mapas.


Versión en español por Guilherme Darisbo


GAVIOTA

A pesar de sobrevolar
avenidas y playas
de varias ciudades,
atravesar valles
situados lejos
y sólo volver al mar a la noche,
la gaviota payasa
apenas avista mapas.


Versión en español por Antonio Carlos de Oliveira Barreto y Paula Ruth

Wednesday, January 13, 2010



A revista "Bravo!" lançou neste mês de janeiro a edição especial "Bravo! Bahia", enfocando a cultura na Bahia atual. A publicação inclui uma matéria sobre a produção literária contemporânea em Salvador, intitulada "O livro virou Carta e o cordel caiu na rede" e assinada por Ronaldo Jacobina. Eu compareço em dois parágrafos, falando sobre poesia, cordel e os rockcitais de que andei participando no ano passado, juntamente com os parceiros do Corte e da Pastel de Miolos. A reportagem comete um erro grave (o vencedor do prêmio MEC com o livro "Moinhos" foi Mayrant Gallo e não Aleilton Fonseca) e peca pela abordagem superficial, deixando de citar nomes fundamentais, como João Filho (poeta e prosador), João de Moraes Filho (poeta) e Dênisson Padilha Filho (romancista). De qualquer forma, é válida a iniciativa de apresentar um painel da atual produção cultural na Bahia de hoje. Talvez enfim o mercado editorial do Sudeste desperte para o que está acontencendo pelas bandas de cá.

Para ler a matéria,
clique aqui
Quantas vezes (...) já não acordei num quarto de hotel (...) escutando (...) o frêmito do tráfego que passava por mim já fazia horas. Então é esse, eu sempre pensava nessas ocasiões, o novo oceano. Incessantes, em vagalhões, as ondas rolam sobre toda a extensão das cidades, ficam cada vez mais ruidosas, estendem-se cada vez mais além, rebentam numa espécie de frenesi no auge do fragor e correm pelo asfalto e pelas pedras, enquanto novas vagas de ruído desprendem-se de onde eram represadas pelos semáforos. Ao longo dos anos, cheguei à conclusão de que é desse rumor que surge agora a vida que virá atrás de nós e que nos destruirá lentamente, assim como nós destruímos lentamente o que existe há muito antes de nós.

(W. G. Sebald, “Vertigem”, p. 53-54)



Um viajante alemão radicado na Inglaterra perambula solitariamente entre a Áustria e a Itália, registrando pensamentos, recordações pessoais, observações fortuitas, sonhos e anotações sobre pintura e literatura, associados com fotografias, recortes de jornal, cartões postais, bilhetes de trem e outras imagens embutidas no corpo do texto. “All’Estero”, segundo capítulo da obra “Vertigem – Sensações” (1990), de W. G. Sebald, é uma espécie de diário de férias ficcionalizado, de gênero indefinível até para o próprio narrador – como se constata à página 77: “(...) o que eu escrevia naquele momento, (...) eu próprio não sabia direito, mas (...) tinha a crescente sensação de que se tratava de um romance policial”. Dois curtos relatos ficccionais baseados em diários íntimos de personagens reais – “Beyle ou O amor, essa criatura agridoce e irresistível” (conto sobre Stendhal que abre o volume) e “A vilegiatura do Dr. K. em Riva” (sobre Kafka) – têm em comum a abordagem literária da solidão em contraponto com um anseio contínuo e frustrado por amor, fornecendo um tênue fio interpretativo para a compreensão do livro como um todo. O quarto e último texto, porém, “Il ritorno in patria”, desloca novamente o eixo temático de “Vertigem”, agora no sentido do reencontro do narrador com a aldeia de sua infância, na Alemanha do momento imediatamente posterior ao final da 2ª Guerra. A prosa de Sebald segue um percurso quase ensaístico, transitando livremente de uma cena para outra, de um assunto para outro, como se imitasse o pensamento ou a memória em suas digressões involuntárias, nas quais coincidências e acasos têm um peso decisivo.

Saturday, January 09, 2010

Um livro pousou, quase obediente, como uma pomba branca, em suas mãos, as asas trêmulas. À luz mortiça, oscilante, uma página pendeu aberta e era como uma pluma de neve, as palavras nela pintadas delicadamente.” (p. 60)

Os livros saltavam e dançavam como pássaros assados, as asas flamejantes de penas vermelhas e amarelas.” (p. 167)

(Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, tradução de Cid Knipel, Ed. Globo)



A ação do romance “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury (publicado em 1953), transcorre em uma grande cidade dos Estados Unidos, sob um governo tecnototalitário às vésperas de uma guerra nuclear, o qual proíbe a leitura e a circulação de livros e emprega equipes de bombeiros exclusivamente na tarefa de incendiar bibliotecas. Elementos cruciais na composição da trama, os livros comparecem em descrições que os infundem pulsação ou vulnerabilidade, como se se tratassem de animais: “pássaros abatidos” (p. 60), “peixes deixados a secar” (p. 61) ou “um bando de ratos (...) saídos do assoalho” (p. 99) – outros exemplos nas citações do início deste post. No capítulo final, são as pessoas que, ao contrário, se transformam em livros, quase literalmente, ao assumirem as identidades de obras perdidas que estudaram e memorizaram, para transmiti-las pela oralidade a outros indivíduos e, assim, manter de algum modo a tradição letrada de nossa civilização (por exemplo, um ex-professor de política “se torna” a “República” de Platão; outro dedica-se a guardar o “Gulliver” de Swift; e assim por diante).

Friday, January 08, 2010

Para Bárbara


VALSA

Um corpo estelar corre
ao encontro de outro corpo,
cavando órbita no espaço oco,

esbarra em obstáculos líticos,
pedaços de planetas extintos,
passa poços de ar viciado,

espaços sem luz, sem vento,
meteoros parados no tempo,
minúsculos farelos lunares,

mas nada impede o avanço certeiro,
através de todo o universo,
do átomo astral imantado a seu parceiro.


O poema acima é dedicado à minha Barberix, que faz aniversário neste sábado, 9 de janeiro. Na próxima quinta-feira será nosso casamento. Com todos esses motivos para comemorar, gostaria de estar ao lado dela esta noite, para sussurrar ao seu ouvido, com uma voz bem caliente e todo meu portuñol: “la poesía es la unión de um hombre y uma mujer para construir con amor y dolor lo que hace falta para vivir” (Jesús Enrique Barrios).
Uma hormiga no es menos poética que uma estrella, porque en la hormiga también fermenta el cosmos que todo lo contiene. La poesia le da vueltas en la eternidad y la aprisiona como la cáscara al huevo, sin dejar de ser el ovo que inicia y termina adentro y afuera... Como decir lo máximo y lo mínimo.” (Jesús Enrique Barrios, em “De poesía con los poetas”, Fundación Editorial El Perro y La Rana, 2007, p. 20)

Num livrinho do venezuelano Jesús Enrique Barrios com reflexões sobre o ofício da poesia, encontrei a anotação acima, que poderia perfeitamente ser usada como epígrafe em uma edição conjunta dos meus dois livros de poemas, “Microafetos” (2005, Edições K, esgotado) e “Macromundo” (inédito, a ser lançado em 2010 pela Confraria do Vento).

(Aproveito para repetir: um último exemplar de "Microafetos" continua à venda no Sebo do Bac (São Paulo), via Estante Virtual.)
A Terra Crioula é como se fosse uma filha nossa – diz a Sra. Ibéria (...)Assim como a Terra Negra. Ambas pertencem ao mundo que nós criamos. É por isso que nossas relações são tão cordiais, tão afetivas.”

(Antônio Torres, em “Os homens dos pés redondos”, 3ª. Edição, 1999, p. 168)



A ação do romance “Os homens dos pés redondos” (1973), de Antônio Torres, se passa num país imaginário chamado Ibéria, que tem semelhanças tanto com o Brasil do período militar quanto com o Portugal tardiamente sob regime filo-fascista do começo dos anos 70 (às voltas com as guerrilhas por independência em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique). O autor cruza referências e vocabulário lusos (“tasca”, “gajo”) e brasileiros (“meu chapa”, “aipim cozido, cuscuz e canjica”) para criar um espaço ficcional híbrido. “Paname”, nome da “louvada e gloriosa” (p. 132), “efervescente e cortejada” (p. 136) capital de Ibéria, parece aludir à idéia de uma “Panamérica” (e, talvez, ao título do romance de José Agrippino de Paula lançado seis anos antes). Os personagens centrais de “Os homens dos pés redondos” são apresentados conforme sua posição hierárquica na “firma Fernandes & Fernandes, Negócios Bancários”, gradualmente, desde o nível inferior até o mais alto – primeiro o funcionário subalterno Manuel Soares de Jesus, depois seu chefe, o escritor Adelino Alves, e por fim o banqueiro e industrial Fernandes (todos os três de algum modo relacionados com um quarto personagem, o publicitário Estrangeiro, que transita pelos diversos ambientes da história sem pertencer a nenhum deles). A história progride de maneira caleidoscópica, com uma sucessão de trechos de discurso interior (manifestando os pontos de vista de uma galeria de personagens, inclusive de figuras secundárias), diálogos dinâmicos e relatos onírico-alucinatórios.

Monday, January 04, 2010

sertão do mundo

O sertão está em toda parte” (p. 24), “o sertão é do tamanho do mundo” (p. 89), “cidade acaba com o sertão. Acaba?” (p. 183), “(...) Sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados” (p. 302), “Agora, o mundo quer ficar sem sertão. (...) Se um dia acontecer, o mundo se acaba” (p. 305), “Sertão: é dentro da gente” (p. 325), “Esse sertão: esta terra” (p. 336), “(...) o sertão do mundo” (p. 359), “o sertão é sem lugar”, “Sertão (...) o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem” (p. 397), “O sertão é bom. Tudo (...) é perdido, tudo (...) é achado. (...) O sertão é confusão em grande demasiado sossego...” (p. 470), “(...) o mais esse sertão tem de ver, quem mais abre e mais acha!” (p. 471), “O sertão tudo não aceita?” (p. 503), “O sertão aceita todos os nomes (...)” (p. 506), “O sertão não tem janelas nem portas” (p. 511), “(...) sertão são” (p. 514), “o sertão é grande ocultado demais” (p. 521), “o sertão está movimentante todo-tempo (...)” (p. 533), “No sertão tem de tudo” (p. 544), “O senhor faça o que queira ou o que não queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão” (p. 548), “Sertão velho de idade. (...) o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. (...) Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe” (p. 558), “(...) longe, longe, até o fim, como o sertão é grande...” (p. 577)

(João Guimarães Rosa, trechos coletados em lenta releitura do “Grande sertão: veredas”, realizada nos dois últimos anos, boa parte da qual a meia voz, na 19ª edição, Nova Fronteira, 2001)