Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Wednesday, February 17, 2010

Foi (...) a época em que ‘ir embora’ se tornou o pai-nosso-de-cada-dia, o pelo-sinal de cada dia, o feijão com farinha de cada dia. A vida ganhava outro sentido – e esse sentido era a estrada, na verdade uma simples vereda cheia de buracos e atoleiros, por onde os (...) caminhões e automóveis se desgraçavam com teimosia (...)” (p. 116)

Tanta escravidão, quanto sertão, tanto não, quanto nada, tanto agreste, quanta estrada, tanta inundação, quanta malhada, tanta seca, quanta queimada. E as chamas. E as cinzas.” (p. 70)

(
Antônio Torres, em “Adeus, velho”, 5ª. ed., 2005)



Neste romance de 1981, Antônio Torres conta como a numerosa prole do velho Godofredo se dispersa em várias direções, partindo do lugarejo de origem, no sertão da Bahia, “
para tentar a vida em outro lugar”, seja na capital Salvador, seja em outros paradeiros “pelo interior adentro”, buscando não um “interior só de roça, mas um lugarzinho melhor, porque cidade vicia” (p. 67). Uma profusão de histórias e de personagens se entretecem numa trama de monólogos, calcados principalmente em Virinha e Zulmiro e compondo uma polifonia de lembranças, anseios e frustrações que guarda uma dinâmica similar à da cidade de Salvador tal como vista por Zulmiro (“um mundo que marcha aos empurrões, solavancos e cotoveladas, barulhento e aflito”, p. 56). À caracterização árida da cidadezinha da infância e da adolescência dos filhos de Godofredo – “pedregulhos sem futuro, (...) sofrida miragem sobre pastos mirrados, (...) casas caindo aos pedaços, (...) um vasto desengano a perder-se na linha de um horizonte desolado que cerca o nada. ” (p. 8); “um amontoado de casinholas disformes, díspares e desbotadas, um modesto ajuntamento humano que já atendeu pelo nome de povoado, até ser promovido a arraial, passando mais tarde a chamar-se vila e depois, em tempos mais recentes, chegando à moderna condição de cidade” (p. 189) – se sucede, na vida adulta, uma Salvador de “ruas bonitas, como os cartões-postais”, mas “sujas e fedidas” (p. 56), “atulhadas de famintos”, com um “péssimo sistema de esgoto” (p. 81) e que já não dá margem para esperanças ou sonhos de felicidade: “Voltar ao passado era um retorno às radiantes promessas de um futuro que redundara apenas no decepcionante dia de hoje. Se houve alguma vez a ilusão de que existiria sempre uma via-láctea a iluminar o caminho de cada um, agora havia a certeza de que o céu não oferecia o mesmo clarão para todos” (p. 129).

Em depoimento publicado no livro “
Com a palavra o escritor” (Fundação Casa de Jorge Amado, 2002), Antônio Torres explica que todos os seus romances contêm o mesmo núcleo temático: “tento buscar um entendimento do que se passa com os homens que trocam a sua terra por outra e que (...) lá no fundo de si mesmos perdem a que tinham e não conquistam a outra.” (ps. 192-193).

Nota
: Outras três obras de Torres já foram comentadas aqui no Silva horrida: "Um cão uivando para a lua" (1972), "Os homens dos pés redondos" (1973) e "Essa terra" (1976). O plano de leitura da bibliografia completa do autor continuará a ser executado nos próximos meses.