Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Wednesday, August 23, 2006

QUARTA JORNADA

TAPEROÁ, BAHIA, 15 DE JULHO DE 2006

para gina leite

neste interlúdio estamos em viagem para a região conhecida como costa do dendê, no litoral baiano. lá o barro mói meus ossos. a possível presença de animais me assusta e penso em voltar para a estrada de baixinhas. o medo me paralisa no meio do mato. não conheço mais as plantas, não lembro os nomes delas. ultimamente só sei de elevadores, telas, tabelas, cronogramas. sexo, jogo e drogas é nosso negócio. volto para a igreja de são miguel arcanjo. é sábado e, de cada aparelho de som ou rádio de pilha, saem forró eletrônico, tecladeira arrocha, bolero breganejo, reggae, pagode, um rock do nirvana. à entrada de uma choupana, três garotos jogam sinuca improvisando com bolinhas de gude numeradas com papel e varetas em lugar de tacos, sobre uma tábua lisa equilibrada numa lata de tinta grande vazia. "ô, cab'a arruinado!", ouço dizer um deles, talvez se referindo a mim. o saneamento básico é precário. a cidade é pobre em tudo. taperoá, tapera-guá, "habitante de taperas" (ruínas em tupi). taperoá eu também.

o município se originou de uma aldeia indígena, são miguel de taperoguá, assediada por jesuítas a partir de 1561, a igreja de são brás edificada sobre colina na margem esquerda do canal do salgado, entre o mangue e terras de zona da mata insalubre, visgo massapê. no cais, uma faixa convida a "cuidar do lixo! lugar de lixo é no lixo!".

na sala de estar da morada-mosteiro, os aprendizes falam sobre a sonhada antena parabólica e zapeiam na tevê a cabo do padre: filme americano legendado, um pouco de boxe peso-pena, flamengo 3 x 1 paraná, um pouco de tênis. pergunto se a cidade tem uma banda filarmônica: foi desativada há algum tempo. pergunto quem é o maior poeta local: morreu há um mês. a globalização foi perfeitamente incorporada ao cotidiano quase medieval de taperoá, mas sequelas proliferam.

Monday, August 14, 2006

TERCEIRA JORNADA

termina a entressafra do pós-são joão. no eixo magneto, da avenida magalhães neto, pela avenida tancredo neves, e mais além, no norte da pituba afora, o crescimento imobiliário vibra, a programação cultural dá sinais de recuperação, a agenda se ativa, os sete sentidos se aguçam, viagens apontam no calendário, navios cargueiros orbitando na baía como astros no mar negro universal é o que se vê nesta noite da janela do apartamento-instalação, minha camisa-cartum recheada de carne do sol.

de pára-quedas caio no colóquio de literatura baiana, na academia baiana de letras. assisto apresentações de trabalhos de estudantes universitárias: "o melhor de anísio: retratos do recôncavo baiano na produção literária de anísio melhor", de ionã carqueijo scarante (aluna da uneb), "a lírica de ruy espinheira e suas interseções", de antonia torreão herrera (ufba) - com o poeta "in presentia" - e "poesia e prosa de arthur de salles sob análise textual", de rita de cássia ribeiro de queiroz (uefs) e maria da conceição reis teixeira (uneb).

dentro da programação da 28ª edição do curso castro alves, a professora edilene matos (puc-sp) apresenta a palestra "castro alves ao som da viola: folhetos, cantores e cantadores", sobre a recepção não-acadêmica à obra do vate grapiúna (1847-1871), citando exemplos em paródias, sambas-enredo de carnaval, literatura de cordel, discografia da música popular brasileira. na literatura de cordel, o ciclo biográfico castroalvino começa com "a vida de castro alves" (1947), do alagoano rodolfo coelho cavalcanti, que a pesquisadora considera o folheto mais antigo a versar a trajetória do poeta baiano. outros poetas que cantaran castro alves: patativa do assaré, cuíca de santo amaro, francisco das chagas batista e jorge de lima ("castro alves - vidinha", 1952). para edilene, castro alves foi um "poeta muito próximo da oralidade espontânea dos cantadores repentistas e poetas de bancada", o que pode explicar a escolha de seu nome como patrono da ordem brasileira dos poetas da literatura de cordel, fundada por rodolfo coelho cavalcanti na década de 1960.

Saturday, August 12, 2006

AS EDIÇÕES K E A FLIP 2006

Quatro autores publicados pelas Edições K nos dois anos de existência da editora comparecem no primeiro número revista Outros baratos, lançada durante a 4ª Festa Literária de Paraty/RJ (FLIP).

Marcelo Benvenutti, Delfin e Wladimir Cazé foram à 2ª FLIP, em 2004, e lá apresentaram ao público os primeiros títulos da editora.

2006 a plenos pulmões, eles agora participam da revista Outros Baratos, lançada pelo sebo Baratos da Ribeiro para divulgar este novo momento da nova literatura emergente. Distribuída gratuitamente nos dias da 4º FLIP, Outros baratos inclui os contos de Delfin ("De como caí no inferno segundo Grant Morrison") e Marcelo Benvenutti ("O medo de atravessar a rua ") e o poema "História", de Wladimir Cazé.

Outros autores na Outros baratos: Mayrant Gallo ("Dizer adeus", contos, Edições K, 2005), Mara Coradello, Mariel Reis e os portugueses Pedro Freitas Branco e José Couto Nogueira. A revista foi editada pelo casal Maurício e Daniele Gouveia, diagramada por S. Lobo (Mosh) e ilustrada por Timba, Felipe Guga, Paula Jardim e Vinícius Mitchell.

Revista: Outros Baratos (40 p., 15cm x 27 cm)
Preço: distribuição gratuita (durante a 4ª FLIP)
Contato: (Rua Barata Ribeiro 354, Copacabana, tel.: 2549 3850 / 2256 8634)
www.baratosdaribeiro.com.br

Saturday, August 05, 2006

SEGUNDA JORNADA

uma pentax optio s-45 me suga definitivamente para dentro da era da imagem digital. o diário de viagem silencia, o olhar ultrapassa a escrita. as palavras agonizam no monitor mental. fico letárgico por um tempo, incapaz de formular uma frase com início, meio e fim. fotografias se sucedem obsessivamente, favelas, cartões postais, cenas domésticas. dias pacíficos gravados em memória flash. a claridade do céu e cores em abundância são o alfabeto com que tento esboçar uma história. os instantes congelados pela tecnologia funcionam como anotações esperando para serem organizadas em uma sequência coerente, seja ela confessional, seja documental.

por exemplo: largo de santo antônio além do carmo, centro histórico de salvador. uma placa na praça informa que a prefeitura está trabalhando na "recuperação" da igreja de santo antonio, onde em 1683 "o conde de bagnuolo oppoz a maior resistência à invasao hollandeza de mauricio de nassau, repellindo com denodo os ataques de 21 de abril e 13 de maio".

um mutirão comandado pelo artista plástico caetano dias (baiano de feira de santana e ex-funcionário do pólo petroquímico de camaçari/BA) começa a construir um muro com açúcar derretido (melado) na esquina da rua dos carvões com o largo de santo antônio. trata-se de uma intervenção urbana em área pública intitulada "canto doce", interdição da calçada entre um poste e um casarão meio em ruínas (com um par de orelhões da telemar no meio) por uma mureta feita de oito sacas de açúcar cristal safra 2005/2006. acompanho os preparativos tomando cerveja no antoniu's bar e restaurante, na rua dos perdões, e olhando distraidamente a disputa pelo terceiro lugar na copa (alemanha 3 x 1 portugal). o jogo acaba. volto à esquina para assistir a preparação do melado e a montagem do trabalho. moradores e transeuntes aparecem para ajudar. crianças arrodeiam os fogões improvisados com perguntas e gracejos. o açúcar derretido escorre das caldeiras, por um funil, para dentro das armações de madeira que servem de fôrma para o muro. o açúcar derretido desce entre duas armações de madeira e se acumula, se solidifica, endurece aos poucos e aos poucos esfria. chega um senhor chamado acaçá e começa a ajudar também. ele está visivelmente bêbado. agora o muro de açúcar está pronto, mas ainda quente. senhor acaçá se admira ao vê-lo, gelo de água suja, água dura marrom. acaçá brinca com a obra, finge que vai socar o muro de açúcar, ri. naquela noite o artista dias interviu, acaçá interferiu, eu vi tudo e a foto de acaçá fingindo formiga a morder é minha.




Exposição de esculturas e fotografias de Caetano Dias. Galeria de Arte Marília Razuk (av. Nove de Julho, 5.719, lj. 2, Jardim Paulista, região central, tel. 3079-0853). Seg. a sex.: 10h30 às 19h. Sáb.: 11h às 14h. Abertura 7/8. Até 26/8.