Com as patas para cima,
a barata feminina
sossega, extenuada,
após erótica batalha
com uma barata macha
que de tal jeito abraçou-a,
que quase deixou-a sem ar,
toda machucada.
Ela suspira e relaxa
para recompor as forças,
seu acre suor sobressalta
cheiro de coisa morta.
A barata se mantém deitada,
casca rachada no chão,
aparência podre, exausta,
mero corpo em decomposição.
BARATA
território de fronteira entre "ensaio, memória pessoal, diário, livro de viagens e ficção narrativa" (p. 226), o romance "o mal de montano", de enrique vila-matas, apresenta como narrador-personagem um "homem-relato" (p. 70) dividido entre sua obsessão doentia pelos livros e sua luta solitária contra o "desaparecimento" da literatura no mundo atual. escrito com auto-ironia e "um estilo sem muitos personagens literários de carne e osso" (p. 156), a obra é uma coleção de frases memoráveis, das quais cito uma que me agrada especialmente: "(...) sem a memória, seria ainda mais angustiante a vida, embora talvez seja ainda mais angustiante dar-se conta de que quanto mais cresce nossa memória, mais cresce nossa morte. Porque o homem não é mais que uma máquina de recordar e de esquecer que caminha para a morte. E não digo isso com tristeza, porque também é certo que a memória, disfarçando-se de vida, converte a morte em algo sutil e tênue" (p. 294)
em palavras e frases tudo fica à deriva"
(Marcel Duchamp)
os anos de formação do poeta andré fernandes na zona centroeste da grande-são-paulo-veredas deram na lira desvairada de seu primeiro livro, "deriva" (hedra, 2007), série de brevíssimos poemas que se combinam na forma de um discurso lírico e lúcido, dedicado a traçar um trânsito em ziguezague do macrocosmo da megacidade - "cidade-edifício" (p. 50), "cidade / desentendida" (p. 53) - aos microcosmos da rua, do beco e da viela, onde passeiam personagens característicos ("joão e maria", "a síndica do prédio", etc.) e elementos recorrentes (a "massa de gases" do sol visto através da poluição, por exemplo)