Silva horrida - Guia de cidades

DESCRIÇÃO PRÁTICA E POÉTICA DO TERRITÓRIO OCUPADO

Thursday, July 31, 2008

21.07.2008
(...) cidade (...) que funciona como uma engrenagem de povos e dinheiro. Williamsburg é o pedaço boêmio em voga nestes tempos, "Endtroducing" e Coronas Extra no bar café Juliette. Na Times Square me sinto esmagado pela grandiosidade de tudo. Não é bem uma praça, mas um grande cruzamento de avenidas e letreiros luminosos com anúncios e notícias atravessando uns aos outros. Painel de Roy Lichenstein (1996) no hall de um arranha-céu a caminho do East Side. Alice-estátua no Central Park, sentada no enorme cogumelo de bronze, o Coelho e o Chapeleiro a seu lado, crianças montando a escultura de metal. (...) do alto do teleférico (aerial tramway) sobre o Canal Oeste, a caminho da ilha Roosevelt. A sensação de mobilidade que a cidade proporciona se intensificou em mim, com a rápida subida ao ponto de vista elevado na escuridão recortada pelas luzes dos prédios. (...)

24.07.2008
(...) a obrigatória Liberdade estática sob o céu fechado. Decidi subir a Broadway desde a Wall Street; a caminhada foi até Union Square. Na Division of United States History, Local History and Genealogy da New York Public Library, leio sobre o breve período em que Nova York foi a capital dos Estados Unidos (de 4 de março de 1789 a 30 de agosto de 1790). A informação está no livro ilustrado "Manhattan maps: 1527-1995", de Paul E. Cohen e Robert T. Augustyn (editora Rizzoli, 1997). A Broadway costumava se chamar Great George Street a partir da Ann Street, mas essa denominação duraria somente até 1794. A baixa Broadway era uma trilha nativa dos índios Lenape que seguia a linha de maior altitude, evitando pântanos e afloramentos de rocha. A segunda informação está no livro "The historical atlas of New York City", de Eric Homberger (Henry Holt Company, 1994). A construção de uma ponte sobre o Collect Pond, em 1780, à altura da atual Canal Street, permitiu que a Broadway continuasse a crescer para o norte. Seu nome holandês, por volta de 1640, era Heerewegh (long highway).

25.07.2008
Hoje à tarde percorri partes do East Village até Chelsea. É uma região de Manhattan com muitos prédios baixos, de até quatro andares, fachadas de tijolos amarronzados, que evocam outras épocas com a presença reduzida de edifícios pós-modernos. Tento tirar o melhor proveito de meu tempo em superfície, já que a dependência do metrô para deslocamentos rápidos me obriga a estar por longos minutos debaixo da terra. Vou pelas ruas e avenidas catando jornais gratuitos nas caixas de plástico coloridas, estrategicamente amontoadas nas esquinas mais movimentadas. Persigo minha própria forma de me introduzir no formigueiro humano, uma sociedade que parece obcecada pela autocontemplação (...)

26.07.2008
Vista a partir do Brooklyn, a parte sul da ilha de Manhattan é a fortaleza envidraçada de um império multi-étnico, à noite um presépio de estrelas, de dia joalheria em ação. As ruas subterrâneas do metrô são prolongamentos das ruas ao ar livre. A magnitude das construções principais me intimida e deteriora minha noção de espaço-tempo. (...) Um diário de viagem a Nova York deve começar pela perplexidade da viagem a uma cidade-estado sagrada. A lógica que confere mágica à personalidade de Nova York é a arte de permanecer sempre a mesma e de estar sempre diferente. (...) Sugadouro de dólares. Apátrida nação. Paraíso da junk food.

27.07.2008
Ocean Beach, na Fire Island, Suffolk, NY. Ondas de vinte em vinte segundos no Atlântico Norte. (...) Somos gângsters ciganos furando moleskines e usando óculos ray ban em território estrangeiro.

29.07.2008
Vertemos nossas colunas vertebrais sobre o teclado, posicionando os pares de câmeras de nossos olhos no contrafluxo da videoteca universal, restaurando memórias premonitórias do nosso mundo manifesto. Já se passaram sete dias desde um meio-dia numa calçada em Astoria, Queens; eu já quis estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, já vi gente comendo em trânsito; peguei o trem pro leste, de Jamaica pra Babylon.

30.07.2008
A cidade de tijolos amarronzados à altura do peito, de ônibus sobre uma ponte podemos apreciá-la em sua magnitude. À nossa volta, os descolados sustentados por pais que foram yuppies bem-sucedidos: estamos em Williamsburg. Coleto todas as publicações que encontro pela frente, atento para o ethos dessa geração de novaiorquinos. As duas torres de 110 andares, riscadas do mapa, são a grande presença ausente da ilha transnacional de Manhattan. O sertão vai virar Mãe Ratã, ratazana-Roma, glocaldeia sem água.

Friday, July 18, 2008

vou para onde é verão

"Viajar, para que e para onde,
se a gente se torna mais infeliz
quanto retorna? Infeliz
e vazio, situações e lugares
desaparecidos no ralo,
ruas e rios confundidos
(...)

Mas ficar, para que e para onde,
se não há remédio, xarope ou elixir,
se o pé não encontra chão onde pousar,
(...)
se viajar é a única forma de ser feliz
e pleno?
"

(Waly Salomão, "Poema jet-lagged", do livro "Algaravias", 1996)

"(...) acontecimentos imprevisíveis de todos os tipos estão à espera, de tocaia, para te surpreender e te fazer ficar satisfeito simplesmente por estar vivo para presenciá-los (...)"

(Jack Kerouac, "On the road", p. 171 da da 1a. edição na Coleção L&PM Pocket)

"A apropriação e a transformação dos textos anteriores, para produzir um novo texto, não é evidentemente um privilégio das literaturas latino-americanas. Mas o intertexto é, para estas, uma espécie de fatalidade, o destino daqueles que vieram tarde demais, quando tudo já parecia ter sido dito. (...) A imitação é então substituída por um exercício voluntário e abusado de plágio e de colagem."

(Leyla Perrone-Moisés, "Vira e mexe, nacionalismo - Paradoxos do nacionalismo literário", p. 125)

nos ensaios, conferências, notas de cursos e artigos contidos em "Vira e mexe, nacionalismo" (2007), leyla perrone-moisés demonstra como conceitos estanques como "identidade nacional", "centro" e "periferia", entre outros, podem ser relativizados em favor de concepções mais abrangentes de cultura e pertencimento.

"(...) o presente e o passado como um espaço de simultaneidade, sincrônico, onde o novo que se faz hoje dialoga perfeitamente com o novo que se fazia ontem, num território a-temporal ou sobre-temporal (...)"

(Haroldo de Campos, em "Aspectos da poesia de vanguarda no Brasil e em Portugal", entrevista de Haroldo de Campos a E. M. de Melo e Castro, publicada no livro "Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana", p. 51)

Thursday, July 10, 2008

Ode à cidade de Nova York em estilo coloquial

"Aqui está Nova York", de Elwyn Brooks White, proporciona uma viagem no tempo a uma Nova York que, no final dos anos 40, vivia um momento de transformação constante, prosperidade e confiança no futuro. Considerado um dos melhores livros sobre a cidade-símbolo do capitalismo e do charme do american way-of-life, o texto - escrito no Verão de 1948, “durante uma onda de calor”, e originalmente publicado em forma de artigo na revista Holiday - tem tradução de Ruy Castro, traça um retrato certeiro da metrópole e dispara: a solidão e a privacidade são as principais “dádivas” que ela oferece a seus habitantes.
White tinha morado lá na juventude, quando era apenas um aspirante a escritor, deslumbrado com o fato de estar na mesma ilha que a poeta Dorothy Parker. Para escrever "Aqui está Nova York", deixou sua fazenda no interior do Maine, para onde se mudara em fins dos anos 30, e instalou-se durante alguns dias num quarto de hotel no centro, a 33 graus, sem ar-condicionado. Enquanto isso, andava por Manhattan, observando tudo. O leitor acompanha o autor em suas perambulações algo nostálgicas por lugares célebres, como Central Park, Broadway, Greenwich Village e a estação de metrô Grand Central (um “mafuá”, segundo White).
Ele descreve em tom saudoso as alterações ocorridas na paisagem de bairros e quarteirões que lhe eram familiares. Suas lembranças incluem personagens que tinham ido embora (Hemingway, Whitman) e ruas e prédios que não existiam mais. “A Broadway mudou num aspecto”, anota. “Costumava ter uma discernível estrutura óssea sob sua superfície brilhante; mas os luminosos são agora tão grandes que os edifícios, lojas e hotéis parecem ter desaparecido sob as luzes e letras em néon.”
Com o olhar atento para detalhes reveladores desse tipo (uma jovem italiana penteia o “longo cabelo preto-azulado”; um solo de trompete soa ao mesmo tempo que a sirene da chalupa Queen Mary), o autor compõe uma ode a Nova York em estilo coloquial. O resultado pode ser classificado como equivalente ao que no Brasil se conhece como crônica: um registro informativo e poético do cotidiano.
E. B. White (1899-1985) nasceu em Mount Vernon, no estado de Nova York, formou-se pela Universidade de Cornell e trabalhou como jornalista nas revistas Harper’s Magazine e The New Yorker. Consagrou-se como autor de livros infantis, entre eles "Stuart Little", de 1945, que foi transformado há três anos em um filme que acaba de ganhar uma seqüência.

Resenha publicada no caderno Folha da Bahia, do jornal Correio da Bahia, em 06/10/2002

Thursday, July 03, 2008

trechos do caderno "van gogh"

28.06.2008.
Subsídios para "Silva horrida". Aproveitei a vinda ao Rio de Janeiro, em função da entrevista no Consulado Norte-Americano para obtenção do visto de turista, para fazer pesquisas na Biblioteca Nacional. Encontrei o livreto "Os nordestinos em Sâo Paulo - Depoimentos" (Ed. Paulinas, 1982). Alguns trechos: "a roça lá também é poluída, é igualmente São Paulo. (...) a poluição da roça é que as pessoas não são todas bem tratadas, igualmente o pessoal da cidade. As crianças não são bem tratadas como as que mora na cidade. A água que se bebe não é bem cuidada como a água da cidade. (...) O trabalho é na agricultura e a pessoa se corta, se fura (...). Eu pensei que deveria partir para outro lugar, para ficar mais insufocado, mais à vontade" (depoimento de Lourinho, p. 18). O livro transcreve diálogos entre moradores de Cajamar, a 29 km de São Paulo capital, nordestinos de Ipirá, Bahia, operários metalúrgicos ou trabalhadores em frigoríficos. Sobre o motivo da decisão de migrar, Júlio fala da "propaganda de que Sâo Paulo é isso, é aquilo" (p. 26). Depoimento de Margarida: "Na hora de pegar a condução pensei: 'Vou ou fico, vou ou não vou? Vou me dar bem ou vou me dar mal?' Mas eu falei: 'Sempre tive essa idéia de ir, eu vou. Todo mundo vai e consegue, porque tem vontade consegue lutar e vencer, por que é que eu não vou?'" (p. 26).


30.06.2008.
Novamente na Biblioteca Nacional. Folheio "Sertanejos contemporâneos: entre a metrópole e o sertão", de Rosani Cristina Rigamonte (Humanitas/USP, 2001) (...). À p. 118, Rigamonte aborda "a iniciativa de um grupo de amigos destinada a sanar as dificuldades de transporte rodoviário entre certas regiões do sertão da Bahia e São Paulo. Esse grupo, formado por antigos migrantes, percebendo o grande afluxo de então [anos 60], inauguraram [sic] uma verdadeira ponte entre esse dois pólos. Adquiriram algumas camionetas (modelo: peruas kombi, da marca Volkswagem [sic]) e criaram uma linha Nordeste-Sudeste-Nordeste ligando os municípios da região de Vitória da Conquista (...) com São Paulo. Em pouco tempo tinham um cronograma completo com datas e horários". Mais adiante: "Os referidos caminhoneiros realizam um pouco o sonho de todos os que partiram e de todos os que ficaram. Podem estar em São Paulo, viver em São Paulo, mas com apenas dois dias de viagem retornam ao sertão baiano, entregam suas encomendas, revêem os amigos, os parentes, recebem notícias, matam saudades e, mais dois dias, pronto, já estão em São Paulo de novo. Estão sempre em contato com os dois mundos, o daqui e o de lá" (p. 122). E ainda: "Muitos consideram como positivo o intercâmbio entre São Paulo e a terra natal (...). Sobrando poucas alternativas para uma fixação definitiva no sertão, o constante movimento de ir e vir acaba se tornando uma estratégia para aproveitar melhor as oportunidades onde elas estiverem. O que fica claro é que estes indivíduos adquirem mobilidade mediante a adaptação à dinâmica dos dois universos. Depois de organizado e conhecido [sic] os mecanismos de inserção na metrópole e no seu mercado de trabalho, não há mais muitas dificuldades para reiniciar o processo. É possível estar no sertão quando necessário, e também retornar à metrópole no momento do trabalho (p. 139). Depoimento de Belizário, 54, que "chegou pela primeira vez a São Paulo no ano de 1959": "No princípio a gente faz de tudo e precisa aprender, é muito sofrido. Mas depois que pega o jeito, a cabeça abre mais, e aí tudo se desenrola, parece que a gente ganha mais força para viver estar vida. Aprendi a andar na cidade, a procurar emprego, e ainda aprendi o caminho de ida e volta da minha terra. Então ficou tudo muito mais fácil" (p. 140). Outro trecho: "Os frequentadores da Praça Silvio Romero (...) participam de certa forma de ambos os pólos, e otimizam as oportunidades de uns e de outros [sic]: quando é época de seca no Nordeste, aproveita-se da oferta de trabalho em São Paulo; o período de chuvas é utilizado para o trabalho na roça; e quando é férias em São Paulo, é momento de festa no sertão. O ano compõe-se de momentos de pico revezados entre São Paulo e sertão" (p. 161). Folheei também, muito por alto, o livreto "Brasileiros na Hospedaria de Imigrantes - A migração para o Estado de São Paulo (1888-1993)", localizando a seguinte informação: "A Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo, através do Departamento Estadual do Trabalho criou, a partir de 1939, em duas cidades mineiras - Pirapora e Montes Claros - postos avançados, onde os migrantes eram recrutados. A primeira, porto fluvial do Rio São Francisco, recebia nordestinos procedentes de vários Estados que chegavam àquela cidade, via Juazeiro (Bahia) e Petrolina (Pernambuco)" (p. 23). O livreto contém resumo de trechos da tese de doutorado "Caminhos cruzados: a migração para São Paulo e os dilemas da construção do Brasil moderno nos anos 1930/50", defendida no Departamento de História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP, em abril de 2000, por Odair da Cruz Paiva. O livreto citado foi publicado pelo Memorial do Imigrante/Museu da Imigração em 2001. Há um depoimento de um certo senhor Afonso da Silva às páginas 41 e 42: "Eu vim de Senhor do Bonfim, Estado da Bahia. Ali em 1938, 1940 ia algumas pessoa daqui [São Paulo] pra lá e chegava lá e dizia que aqui era uma beleza (...) que aqui era bonito, tinha muito dinheiro (...) e aquilo acabou me atraindo. (...) aí em 1948 eu saí de lá de Serrinha, de Serrinha pegamos um caminhão que tinha umas tábua e tinha uns assento e tinha uma lona por cima que aquilo era os ônibus que existia naquela época (...) era os pau-de-arara (...) então de lá eu fui até Feira de Santana, fiquei um dia numa pensão, no outro dia pegue [sic] um trem, desci em Jequié, fiquei lá três dias na pensão esperando caminhão, esse caminhão veio até Montes Claros (...) e de lá para São Paulo. São Paulo a gente chegava aqui, todo mundo conhecia a estação Roosevelt, naquela época era a estação do Norte, que todo mundo que era do Norte vinha ali (...)".
"Casas fechadas, terras abandonadas. Agora o verdadeiro dono de tudo era o mata-pasto, que crescia desembestado entre as ruas dos cactos de palmas verdes e pendões secos, por falta de braços para a estrovenga. Onde esses braços se encontravam? Dentro do ônibus, em cima dos caminhões. Descendo. Para o sul de Alagoinhas, para o sul de Feira de Santana, para o sul da cidade da Bahia, para o sul de Itabuna e Ilhéus, para o sul de São Paulo - Paraná, para o sul de Marília, para o sul de Londrina, para o sul do Brasil. A sorte estava no sul, para onde todos iam (...)"

(Antonio Torres, "Essa terra", p. 89)


dividido em quatro partes - "Essa terra me chama", "Essa terra me enxota", "Essa terra me enlouquece" e "Essa terra me ama" - o livro do escritor baiano (lançado em 1976) "tematiza o retorno do nordestino que fracassou em São Paulo" (segundo definição de Marco Antonio Villa em "Vida e morte no sertão", p. 15). a narrativa polifônica, entrecortada, alterna as vozes do filho que migrou e retorna depois de 20 anos ("não sei se volto ou se fico. Acho que agora tanto faz. Porque o tempo que comeu o meu chapéu de palha, agora está comendo o lugar que deixei em São Paulo", p. 124), do filho que ficou, do pai e de vários outros personagens. a partir do terceiro capítulo, o romance efetivamente "enlouquece", acentuando seu caráter fragmentário e incorporando a confusão mental da mãe e a desagregação familiar à composição textual.