“
Quantas vezes (...)
já não acordei num quarto de hotel (...)
escutando (...)
o frêmito do tráfego que passava por mim já fazia horas. Então é esse, eu sempre pensava nessas ocasiões, o novo oceano. Incessantes, em vagalhões, as ondas rolam sobre toda a extensão das cidades, ficam cada vez mais ruidosas, estendem-se cada vez mais além, rebentam numa espécie de frenesi no auge do fragor e correm pelo asfalto e pelas pedras, enquanto novas vagas de ruído desprendem-se de onde eram represadas pelos semáforos. Ao longo dos anos, cheguei à conclusão de que é desse rumor que surge agora a vida que virá atrás de nós e que nos destruirá lentamente, assim como nós destruímos lentamente o que existe há muito antes de nós.(
W. G. Sebald, “
Vertigem”, p. 53-54)
Um viajante alemão radicado na Inglaterra perambula solitariamente entre a Áustria e a Itália, registrando pensamentos, recordações pessoais, observações fortuitas, sonhos e anotações sobre pintura e literatura, associados com fotografias, recortes de jornal, cartões postais, bilhetes de trem e outras imagens embutidas no corpo do texto. “All’Estero”, segundo capítulo da obra “
Vertigem – Sensações” (1990), de W. G. Sebald, é uma espécie de diário de férias ficcionalizado, de gênero indefinível até para o próprio narrador – como se constata à página 77: “(...)
o que eu escrevia naquele momento, (...)
eu próprio não sabia direito, mas (...)
tinha a crescente sensação de que se tratava de um romance policial”. Dois curtos relatos ficccionais baseados em diários íntimos de personagens reais – “Beyle ou O amor, essa criatura agridoce e irresistível” (conto sobre Stendhal que abre o volume) e “A vilegiatura do Dr. K. em Riva” (sobre Kafka) – têm em comum a abordagem literária da solidão em contraponto com um anseio contínuo e frustrado por amor, fornecendo um tênue fio interpretativo para a compreensão do livro como um todo. O quarto e último texto, porém, “Il ritorno in patria”, desloca novamente o eixo temático de “
Vertigem”, agora no sentido do reencontro do narrador com a aldeia de sua infância, na Alemanha do momento imediatamente posterior ao final da 2ª Guerra. A prosa de Sebald segue um percurso quase ensaístico, transitando livremente de uma cena para outra, de um assunto para outro, como se imitasse o pensamento ou a memória em suas digressões involuntárias, nas quais coincidências e acasos têm um peso decisivo.